segunda-feira, 19 de outubro de 2015

O CALVÁRIO (E O CASTIGO) DA LUSA


Diferentemente de boa parte das coisas da vida, futebol é uma opção. É você quem escolhe o time que deseja torcer. Na vida, não dá para escolher ser pobre ou rico. Mas dá para escolher para qual time torcer.
E já que você se propõe a amá-lo pelo resto de sua vida, por que cargas d'água escolher um time secundário, enrolado, que pouca gente conhece seus ídolos e sua história, que é eternamente a "zebra" e que não conquista um título há mais de 40 anos? Para que escolher sofrer numa das poucas coisas da vida em que se tem o privilégio de optar?
Júnior pensava assim. Mas encontrava algum tipo de resposta vendo o fanatismo de seu pai pelo time do Canindé. Um velho português sisudo e de cara fechada, mas que fazia festa na padaria após cada vitória da Lusa e que chegava a fechar as portas mais cedo quando a derrota era mais dolorida. Júnior nunca gostou tanto de futebol como o pai, nunca foi de jogar bola nos campinhos como a maioria de seus amigos durante a infância, mas quase sempre acompanhava o pai até o Canindé nas tardes de domingo. O pai era um torcedor apaixonado, romântico, que odiava ouvir que a Portuguesa "era o segundo time de todo mundo". Para o seu pai, a Lusa era, por exemplo, muito mais soberana que aquele clube do bairro nobre da capital e sua torcida era bem mais fiel que a daquele time vizinho, que ficava a poucos minutos do Canindé seguindo na mesma Marginal Tietê. Jamais viu seu pai vestir uma camisa que não fosse a rubro-verde. Os times considerados grandes, dos craques da televisão e da mídia, simplesmente faziam parte do resto. E o resto é o resto.
Até que, em dezembro de 2013, a Portuguesa aplicou um duro golpe no velho. Pelo rádio da padaria, ouviu a notícia de que sua Lusa fora rebaixada para a segunda divisão no lugar do Fluminense, depois de conseguir se manter na primeira divisão a duras penas dentro de campo. Um descenso inesperado, decidido nos tribunais por gente que nunca chutou uma bola na vida, e que afetou ainda mais a saúde já debilitada de seu velho pai. Afinal, o futebol e a Portuguesa eram talvez suas maiores alegrias. Ou seus melhores erros. Enfim, suas escolhas na vida. Júnior checou as informações e explicou ao pai que a Portuguesa escalou um jogador suspenso que atuou por cerca de 15 minutos no jogo da última rodada que não valia absolutamente nada para o clube.
- Mas eles não sabiam que o jogador estava suspenso? - questionou nervoso o pai.
- Sabiam sim, pai. A decisão do STJD aconteceu numa sexta-feira e o jogo foi no domingo. O advogado da Lusa a representava no momento do julgamento e da informação da sentença. O Hevérton sequer poderia ser relacionado para a partida. Mas jogou 15 minutos e por causa disso a Portuguesa perdeu 4 pontos que a rebaixaram para a Série B de 2014 no lugar do Fluminense - respondeu Júnior vendo o pai atônito e boquiaberto.
- No lugar do Fluminense? Justo do Fluminense? Não pode ser. Tem algo de muito errado nisso. Como pode? É muito estranho isso tudo.. - inconformou-se o pai.

Daquele dia em diante, tudo mudou. O pai não demonstrava mais o mesmo fervor e amaldiçoava os dirigentes do clube que tanto amava. Raramente ia ver jogos no Canindé, porémmesmo cada vez mais adoecido, passou seus últimos domingos de vida com o radinho de pilha grudado no ouvido, acompanhando os jogos da Lusa na Série B. Acabou falecendo vendo a Portuguesa pobretona, mergulhada em dívidas e problemas decorrentes de péssimas administrações. Por outro lado, também não viu um novo rebaixamento: para a Série C de 2015. "Melhor assim", pensou o filho.
Depois de quatro rebaixamentos em quatro temporadas, surgiu em outubro de 2015 um sopro de esperança. Outro sábado de jogo decisivo no Canindé, só que dessa vez o time não estava na degola. A Portuguesa precisava vencer o Vila Nova por dois gols de diferença para voltar à segunda divisão. Havia perdido o primeiro jogo em Goiás por 1 x 0.
Júnior criou coragem e movido por uma força maior estava lá, sentindo mais do que nunca a presença do velho pai. Um sentimento que se misturava aos fogos, aos balões e à festa do futebol que provavelmente enchia seu pai de orgulho torcendo agora em outra dimensão. Nada menos que 17 mil lusitanos lotaram o velho Canindé naquele sábado, empurrando a Portuguesa ao som do bordão "Eu Acredito" que ecoava nas arquibancadas. É claro que teve muita gente que só foi ali para concorrer a uma diária no motel ou a uma boquinha livre numa famosa pizzaria da cidade, frutos de ações de marketing do clube na tentativa de atrair o torcedor para o "jogo do ano". Deu certo. E como certamente lhe diria seu pai, "vale tudo para ver o Canindé todo pintado de verde e vermelho".
A torcida confiou que era possível acreditar novamente na Portuguesa e no acesso de volta à Série B. Ledo engano. O Vila Nova vence por 2 x 1 e frustra o sonho de Júnior, de seu pai e de tanta gente que optou por sofrer até no futebol. O time goiano vai para a Série B de 2016 e a Portuguesa, com todos os seus fantasmas, vai disputar a terceira divisão, de novo.
- Ainda não foi dessa vez. Até quando, meu Deus? - lamentou-se às lágrimas um torcedor ao seu lado com as mãos para o céu.
Calado, Júnior ouviu o apito final do árbitro e imediatamente lembrou-se de quando seu pai, certa vez aos prantos, lhe afirmou que as coisas seriam ainda mais difíceis para a Portuguesa depois daquele "estranho" rebaixamento no tapetão, em 2013.
- Seria tudo isso então um castigo para o que fizeram com a Lusa? - pensou.
Júnior, mesmo a contragosto, entendeu também que fez a escolha certa quando decidiu estar ali, no Canindé, naquela noite de sábado, vendo o coro de 17 mil vozes se misturar aos seus gritos e logo depois ao seu choro de frustração. Mais uma. E com o coração fez uma discagem direta interestelar ao pai, que por um instante o sentiu bem do seu lado, lhe abraçando, também chorando de tristeza por aquele momento. Mais um.
Mas agradeceu ao pai por lhe mostrar, um dia, que o futebol era uma opção. Melhor assim.


Assine o Estadão All Digital + Impresso todos os dias
Siga @Estadao no TwitterAssine o Estadão All Digital + Impresso todos os dias
Siga @Estadao no Twitter

Nenhum comentário: