quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

QUEM DECIDE A HORA DE UM "MITO" PARAR?


Era o começo da noite de uma sexta-feira quente, de baixa umidade, temperatura batendo na casa dos 30 graus. Ele havia encerrado o expediente e se deu ao direito de beber uma cerveja gelada num bar mais ou menos conhecido da região. A “loira da vitória”, como costumava dizer.
Aos poucos, o local foi ficando bastante movimentado e com a presença de muitos torcedores. E torcedoras também, claro. Todos vestiam a mesma camisa: branca, vermelha e preta. Não era dia de futebol, mas soube que teria um jogo especial naquela noite e que muita gente se encontraria ali para assistir.
Pouco antes do início da partida, o bar estava lotado. E o assunto recorrente era a aposentadoria anunciada do goleiro e capitão daquele time grande de três cores. Mais do que isso: um goleiro-artilheiro, cheio de recordes.
 Era visível a idolatria dos torcedores ali presentes pelo goleiro. Até o chamavam de “Mito”. Fez uma rápida pesquisa no Google e descobriu: Aos 42 anos, sendo 25 anos de carreira, foram 131 gols marcados, 1.237 partidas vestindo aquela camisa (e somente ela), 978 jogos como capitão e mais de 700 vitórias. Ou seja, jamais haverá outro goleiro com tantos feitos na carreira como aquele. E por essas e outras razões, aquele goleiro é considerado o maior ídolo da história de seu clube. E o maior goleiro-artilheiro desde que o futebol existe.
Começou o jogo, o estádio em festa. Ele nem gostava tanto de futebol e não torcia para time nenhum, mas normalmente assistia aos jogos da seleção brasileira. O que também estava em xeque após o fiasco na última Copa. Ou melhor, da “nossa” Copa, disputada em nosso quintal. No entanto, a atmosfera daquele ambiente no bar lhe fez interessar-se mais do que o normal por aquele jogo e ele, com os olhos na tela, na multidão e entre uma cerveja e outra, passou a prestar atenção no goleiro que em breve estaria se despedindo dos gramados.
Logo percebeu que o goleiro era um líder nato. Arrumava o time dentro de campo, gesticulava e gritava com os companheiros, batia palmas diante de uma bela jogada, estimulava a equipe. Tinha técnica e o reflexo ainda apurado que lhe davam segurança para fazer defesas importantes. Os demais jogadores de seu time, qualquer um, tinham extrema confiança no tal goleiro. Recuavam a bola sem cerimônia, mesmo em situações de risco. E como raríssimos jogadores de sua posição, o goleiro sabia perfeitamente sair jogando com os pés, até se atrevia a fazer um ou outro lançamento de longa distância. Jogava adiantado, quase de “líbero”, como disse um torcedor ao seu lado. A galera do bar vibrava a cada defesa que fazia como se fosse um gol. Emocionados, alguns não escondiam as lágrimas.
Mas levou um gol. E o primeiro tempo acabou com vitória parcial do time adversário.
O goleiro foi o principal alvo dos repórteres quando os jogadores deixavam o campo para o intervalo. Nas entrevistas, não mostrava nenhum sinal de abatimento ou de conformismo com a derrota, nenhum sinal de cansaço ou de acomodação. Perspicaz, sabia falar e se expressar bem.
Veio o segundo tempo. Uma falta perigosa próxima da área e, com atitude e empurrado pelos seus “súditos” no estádio lotado, fez a cobrança com exímia categoria e a bola explodiu no travessão.
– Uuuuuuuuuuhhhhhhh!!! - soltou o pessoal do bar, eufórico.
Fim de jogo. O sonho acabou. A hora da despedida chegou. Todos o saudavam em cada passo da volta olímpica. Cada torcedor sabia que dali para frente a vida dentro de campo seria mais difícil sem o ex-capitão. Ou, para eles, sem o "Mito".
E ele ficou sem entender por que o tal goleiro estaria encerrando sua carreira. Por que iria se aposentar? Por que chegou a hora? Quem determina a hora de um profissional desse nível parar?
O “fim” tem que partir dele, do ídolo. É claro que no futebol, depois dos 40 anos, as falhas se tornam imperdoáveis. Pois não se julga um veterano com os mesmos olhos com os quais se julga um jovem promissor que ainda tem a carreira inteira pela frente. Ao veterano, a crítica é mais dura, ácida, e se enxerga mais a decadência do que as virtudes. Ficou sabendo por uma torcedora que o goleiro-artilheiro usou uma camisa confeccionada especialmente para aquele que seria seu último jogo. E ele respondeu:
– Fácil. É só dobrar e recolocar na embalagem. E novamente pegar o uniforme de jogo.
Porque ele sentiu o quanto aquele jogador era importante para seus torcedores. Ídolo incondicional de um clube. E mesmo que os torcedores rivais não gostem dele, mesmo que digam com deboche que "mito" é apenas um apelido que lhe deram e que o goleiro nunca foi "tudo isso", pouco importa. Para o futebol, esse goleiro-artilheiro é uma referência, uma marca registrada na história e uma lembrança do antigo e genuíno jeito de jogar do brasileiro mesclado com o profissionalismo que exige o futebol atual.
Aquele senhor com 42 anos e 25 anos de carreira é, dentro de campo, um menino ainda bastante esforçado e com a determinação de um iniciante que acabou de estrear no time profissional. Seu semblante compenetrado debaixo do travessão nos remete a uma época em que o então “País do Futebol” não passava por humilhações como o 7 x 1 dentro de nosso quintal.
Pelé disse certa vez que "um jogador precisa abandonar o futebol antes que o futebol o abandone". E se um ídolo como Rogério Ceni acredita que não vale mais a pena correr o risco de arranhar sua rica história de recordes e vitórias, quem pode dizer o contrário?
Jogadores encerram suas carreiras. "Mitos" entram para a história.

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