domingo, 25 de setembro de 2016

O CALVÁRIO E O CASTIGO

*por Adriano Oliveira

"A Associação Portuguesa de Desportos foi rebaixada para a Série D do Campeonato Brasileiro na tarde deste domingo. Na condição de visitante, o tradicional time rubro-verde perdeu por 2 a 0 para o Tombense, resultado que provoca a queda à última divisão do futebol nacional."
(Notícia dada pelo repórter de uma tradicional emissora de rádio paulistana às 17h56 do dia 18 de setembro de 2016)



Diferentemente de boa parte das coisas da vida, futebol é uma opção. É você quem escolhe o time que deseja torcer. Na vida, não dá para escolher ser pobre ou rico. Mas dá para escolher para qual time torcer.
E já que você se propõe a amá-lo pelo resto de sua vida, por que cargas d'água escolher um time secundário, que pouca gente conhece seus ídolos e sua história, eternamente a "zebra" que não conquista um título há mais de 40 anos? Para que escolher sofrer numa das poucas coisas da vida em que se tem o privilégio de optar?
Junior pensava assim. Mas encontrava algum tipo de resposta vendo o fanatismo de seu pai pelo time do Canindé. Um velho português sisudo e de cara fechada, mas que fazia festa na padaria após cada vitória da Lusa e que chegava a fechar as portas mais cedo quando a derrota era mais dolorida. Junior nunca gostou tanto de futebol como seu pai, nunca foi de jogar bola nos campinhos como a maioria de seus amigos durante a infância, mas quase sempre o acompanhava até o Canindé nas tardes de domingo. O pai era um torcedor apaixonado, romântico, que odiava ouvir de quem quer que fosse que "a Portuguesa era o segundo time de todo mundo". Para seu pai, a Lusa era, por exemplo, "muito mais soberana que aquele clube do bairro nobre da capital". E sua torcida era "bem mais fiel" que a daquele time vizinho, que ficava a poucos minutos do Canindé seguindo na mesma Marginal Tietê. Junior jamais viu seu pai vestir uma camisa que não fosse a rubro-verde. Os times considerados grandes, dos craques da televisão e da mídia, simplesmente faziam parte do resto. 

- E o resto, meu filho, é o resto - dizia o pai.
Até que, em dezembro de 2013, a Portuguesa aplicou um duro golpe no velho. Pelo rádio da padaria, ele ouviu a notícia de que sua Lusa fora rebaixada para a segunda divisão no lugar do Fluminense, depois de conseguir se manter na primeira divisão a duras penas dentro de campo. Um descenso inesperado, decidido nos tribunais por gente que certamente nunca chutou uma bola na vida. Uma verdadeira "catástrofe" que afetou ainda mais a saúde já debilitada do pai. Afinal, o futebol e a Portuguesa eram talvez suas maiores alegrias. Ou seus melhores erros. Pelo bem ou pelo mal, eram suas escolhas na vida.
Junior checou as informações e explicou ao pai que a Portuguesa escalou um jogador suspenso que atuou por cerca de 15 minutos no jogo da última rodada. Uma rodada que não valia absolutamente nada para o clube.
- Mas eles não sabiam que o jogador estava suspenso? - questionou nervoso o pai.
- Sabiam sim, pai. A decisão do STJD aconteceu numa sexta-feira e o jogo foi no domingo. O advogado da Lusa a representava no momento do julgamento e da informação da sentença. O Hevérton sequer poderia ser relacionado para a partida. Mas jogou 15 minutos e por causa disso a Portuguesa perdeu 4 pontos que a rebaixaram para a Série B de 2014 no lugar do Fluminense - respondeu Junior vendo o pai atônito e boquiaberto.
- No lugar do Fluminense? Justo do Fluminense? Não pode ser. Tem algo de muito errado nisso. Como pode? É muito estranho isso tudo... - inconformou-se o pai.



Daquele dia em diante, tudo mudou. O pai não demonstrava mais o mesmo fervor e amaldiçoava os dirigentes do clube que tanto amava. Raramente ia ver jogos no Canindé, porém, mesmo cada vez mais adoecido, passou seus últimos domingos de vida com o radinho de pilha grudado no ouvido, acompanhando os jogos da Lusa na Série B. Acabou falecendo vendo a Portuguesa pobretona, mergulhada em dívidas e problemas decorrentes de péssimas administrações. Por outro lado, também não viu um novo rebaixamento: para a Série C de 2015.
Melhor assim - pensou o filho.
Mas nada é tão ruim que não possa piorar. Depois de quatro rebaixamentos em quatro temporadas, o fantasma parecia não desistir de assombrar os lusitanos.  Dona de uma campanha sofrível na Série C de 2016, com apenas quatro vitórias, dois empates e nada menos que doze derrotas, somente 14 pontos conquistados, a Portuguesa estava a beira de mais uma queda, ainda mais dolorosa, já que dessa vez o destino seria a última divisão do futebol brasileiro.
Era tarde de domingo. Na padaria, Junior estava ao lado de um velho amigo de seu pai, também um rubro-verde fervoroso. Faltavam cinco minutos para começar o jogo e ele pouco se preocupava com o movimento. Quieto, ligou o rádio.
Por ironia do destino, o time do Canindé entrava em campo na cidade de Tombos, em Minas Gerais, com a missão de literalmente não levar o maior tombo de sua história diante do modesto Tombense, time que se tornou profissional há apenas 17 anos.
Apática, a Lusa sofreu o primeiro gol da partida decisiva aos 29 minutos do primeiro tempo. No mesmo instante, no Rio de Janeiro, o Botafogo de Ribeirão Preto fez 1 x 0 sobre o Macaé, que era concorrente direto da Portuguesa na luta para escapar da degola.
- Eu acredito! - gritou Junior, talvez mais confiante num milagre dos Deuses do Futebol ou, quem sabe, em alguma artimanha de seu velho pai, em outra dimensão, sorrateiramente deslocando as traves de lugar num chute despretensioso de algum jogador lusitano. Sim, uma vitória bastaria para evitar o "tombo" vergonhoso à Série D.
Veio o segundo tempo. A Portuguesa não mostrava reação. Até que, aos 24 minutos, Gedeilson recebeu livre pela direita e cruzou. Após chute de um tal de Maradona no travessão, a bola, caprichosa, sobrou para Bileu que a dominou e finalizou com precisão. 2 x 0 para o Tombense.
Junior chorou. Nem tanto pela iminente derrota, mas porque confiou ser possível acreditar pelo menos no derradeiro capítulo de um drama que parece não mais ter fim. Porque acreditou que não fosse possível mais um novo e traumático rebaixamento. Ledo engano. A Portuguesa novamente frustrou o sonho de Junior, de seu pai e de tanta gente que optou por sofrer até mesmo no futebol. Com todos os fantasmas que a assombram desde o polêmico episódio dos tribunais em 2013, o time continuava seguindo firme em seu calvário, sem sequer saber se chegará ao centenário daqui a pouco menos de quatro anos.
- Até quando, meu Deus? - lamentou-se às lágrimas o velho amigo de seu pai, do outro lado do balcão, com as mãos levantadas para o céu.
Calado, Junior ouviu o apito final do árbitro e imediatamente desligou o rádio. Lembrou-se de quando seu pai, certa vez aos prantos, lhe afirmou que as coisas seriam ainda mais difíceis para a Portuguesa depois daquele "estranho" rebaixamento no tapetão.
- Seria tudo isso então um castigo para o que fizeram com a Lusa? - perguntou em voz alta ao amigo do pai que, silenciosamente, deixava a padaria.
Júnior, mesmo a contragosto, entendeu que fez a escolha certa quando decidiu estar tantas vezes com o pai no Canindé, em tardes de domingo como aquela, mesmo sem compreender o fascínio de tanta gente pelo futebol, vendo o coro de vozes se misturar aos gritos ou ao choro de frustração de seu querido e velho pai. Naquela tarde de domingo, infelizmente mais uma frustração. E com o coração fez uma discagem direta interestelar ao pai, sentindo-o por um instante bem ao seu lado, lhe abraçando, também chorando de tristeza por aquele momento terrível. Mais um.
De qualquer forma agradeceu ao pai por lhe mostrar, um dia, que o futebol era uma opção. Apesar de tudo, também era melhor assim.




Adriano Oliveira tem este Blog desde 2009, mas a paixão pelo futebol nasceu bem antes disso. É um apaixonado que vibra pelas 11 posições, mas sempre assume uma, pois jamais fica em cima do muro. Aos 43 anos, o futebol ainda o faz sentir a mesma coisa que ele sentia aos 10.

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